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Carta Coletivos Feministas sobre episódio na Fundaj em 29/08/2015

Instituto Papai assina:

Nesse sábado (29/08), ocorreu no cinema da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), durante o debate sobre o filme “Que horas ela volta?” de Anna Muylaert, mais um retrato da sociedade patriarcal em que vivemos: um espetáculo de machismo, homofobia e gordofobia. Os cineastas Lírio Ferreira e Cláudio Assis tentaram impedir a fala da cineasta e do público aos gritos, listando os “defeitos” da atriz principal do filme, Regina Casé, chamando-a de gorda e ao maquiador de “bichona”. Devido ao incidente, a Fundaj lançou uma nota de desculpas e uma medida que suspende a presença de ambos e suas obras nos espaços da Fundação pelo período de um ano. Algumas pessoas se posicionaram contrariamente à postura da instituição e, por isso, nós, coletivos feministas da cidade do Recife, vimos a público tentar desmistificar alguns argumentos e nos posicionar nesse debate:


1. “A decisão da Fundaj foi punitivista e anti-democrática”. Vivemos um momento político, a nível nacional, que exige uma recapitulação acerca do sentido das palavras “democracia” e “liberdade”. Primeiro, não há como se falar em democracia sem se falar em igualdade entre xs sujeitxs que a compõem. Esta igualdade pressupõe o respeito mútuo e, portanto (e sobretudo), o respeito ao diferente. Uma atitude opressora, machista e gordofóbica é, na verdade, o que existe de mais anti-democrático - e não a ação de uma instituição pública (como é o caso da Fundaj) que visa reprimir atos vexatórios e discriminatórios, os quais, por seu turno, vão, sim, de encontro aos princípios do próprio Estado Democrático de Direito, tal como se reivindica na nossa República Federativa Brasileira. Segundo, a liberdade de opressão não é o mesmo que liberdade de expressão. Defender a liberdade de expressão não significa defender o direito à oprimir outras pessoas. Desejar a liberdade é desejar a liberdade de todxs. O que vemos no debate em questão é uma confusão conceitual. Comparar a censura ao machismo às censuras do período ditatorial é um desrespeito histórico. Relativizar a censura dessa forma é relativizar os motivos históricos pelos quais diferentes atores foram censurados. Temos total convicção de que o machismo, lgbtfobia e gordofobia devem ser punidos e vetados. Especialmente porque estes atos não aparecem como rompantes isolados ou atos sem reverberação na sociedade. São, ao mesmo tempo, reflexo de uma sociedade patriarcal e perpetuam essa mesma sociedade. Sociedade patriarcal esta a qual estamos lutando para DERRUBAR! É preciso escurecer um fato: não se trata de negar o direito à divergência, se trata de vetar um discurso de ódio amplamente disseminado na nossa sociedade, motor impulsionador de espancamentos e assassinatos diários de mulheres Brasil afora.

2. “O cinema é uma arte coletiva, de forma que o veto aos filmes destes diretores estende a punição a toda a equipe que participou do processo”. Ora, sejamos francxs. O cinema é uma arte coletiva, mas é também extremamente hierarquizada. Todxs nós sabemos que a pessoa que responde pelo filme é x diretorx, sendo as outras pessoas responsabilizadas pelas suas áreas específicas, mas não pela obra como um todo. Consideramos de extrema importância o debate acerca da horizontalidade e do amplo reconhecimento de diferentes atorxs envolvidos nos processos criativos do cinema, principalmente porque consideramos que essa questão é importante em todos os campos da nossa organização social. Apoiamos, desta forma, a parcela da categoria que está empenhada em desconstruir esta hierarquia em suas práticas profissionais - o que, entretanto, é radicalmente diferente da negação ingênua da existência da centralidade de mérito e responsabilidade no campo cinematográfico hoje. Se a equipe será prejudicada, a culpa é de exclusividade dos diretores. Igual ingenuidade é a que tenta separar as obras de seus diretores como se suas obras não fossem, sobretudo, o palco desses sujeitos. A Fundaj não está restringindo o direito destes diretores de produzir filmes, tampouco está impedindo o público de ter acesso a estes filmes. A instituição está apenas demonstrando coerência com os seus princípios – não fazendo mais do que sua obrigação enquanto órgão estatal com fins educacionais que é -, negando visibilidade (e são os seus filmes o que dão a maior visibilidade para os indivíduos em questão) a indivíduos que comungam com uma visão de mundo opressora, a qual a instituição deve estar comprometida em combater.

3. Os indivíduos envolvidos estavam alcoolizados e, por isso, perderam o controle. É com pesar que percebemos ainda ser necessário desconstruir um argumento como este. A culpabilização do álcool é uma estratégia antiga, muito usada em casos de violência contra a mulher. Não é, de forma alguma, justificativa adequada para sair vociferando injúrias (e, na maioria dos casos, violência física) contra as mulheres. Deverão, sim, ser responsabilizados sempre que representarem ameaça pública.

O caso de violência mostrou algo além do machismo, revelou a força enorme de todas as mulheres que, após o acontecido, não nos calamos. O assunto veio à tona como não viria em outras épocas e, como já não é mais possível negar que houve machismo, buscam-se outras formas de deslegitimar a responsabilização feita. Com todo esse arsenal de defensorxs, estamos a correr o risco destes indivíduos pensarem que estão com a razão. Não podemos recuar. Estamos fartas desses shows de machismo revestidos de suposta irreverência. O machismo não é irreverente! O machismo é a reprodução de tudo de mais conservador que existe. É importante não deixar esse fato ser esquecido, assim como não esqueceremos que o cineasta dinamarquês Lars Von Trier foi considerado persona non grata no festival de Cannes após uma declaração nazista. A decisão da Fundaj é sobretudo uma decisão política, e é dessa forma que precisamos entender o fato.
A sanção provisória da Fundaj, ao nosso ver, ainda é muito pouco. É necessário problematizar e desconstruir o machismo impregnado no cenário audiovisual pernambucano. Não esqueçamos da recente polêmica que a Mostra Cinema de Mulher, realizada no final de março de 2015 no Cinema da Fundação, suscitou no meio. Pensada exclusivamente por realizadoras mulheres, a Mostra foi ridicularizada por várias pessoas da cena cultural de Pernambuco. A Fundaj, ente público voltado à educação e à cultura, tem o compromisso social de realizar um evento que promova a discussão do machismo no audiovisual, com ampla participação das mulheres. Especialmente porque os dois recentes casos de machismo com repercussão pública no meio se deram em atividades promovidas pela entidade. Propomos que esse evento conte com uma mostra de filmes realizados por mulheres, com representação expressiva de cineastas negras, lésbicas e transexuais, além de um espaço para discussão sobre o machismo e a representatividade das mulheres no audiovisual, especialmente no cinema pernambucano.
Xs envolvidxs na polêmica lançaram diversas notas, colocando suas posições diante do ocorrido. É ótimo que o evento tenha suscitado reflexões e consideramos legítimo que todxs façam suas ponderações, sobretudo Anna Muylaert, que foi alvo principal das agressões em questão, a qual tem todo nosso apoio em suas decisões. Gostaríamos de pontuar, entretanto, que as desculpas não devem estar voltadas apenas à diretora ou ao público presente, mas sim a todas as mulheres. A explosão de comentários se deve principalmente porque nós, mulheres que partilhamos cotidianamente espaços no meio audiovisual do Recife, estamos esgotadas destas demonstrações de machismo. O que é preciso ter em mente é que estas ações estão diretamente conectadas ao feminicídio e a toda forma de violência que vivenciamos hoje no Brasil. Não se trata de um machismo apartado, de “níveis” diferentes de machismo. O que existe é uma cultura machista que se retroalimenta. Isso não pode ser tolerado. Em oposição à afirmação de Cláudio Assis em sua página de Facebook, não vemos na postura daquelas que se sentiram agredidas pelos diretores manifestação de conservadorismo ou caretice. Careta e ultrapassado é quem se mantém inerte e usa dos argumentos mais rasos para manter seu status quo. Careta é o machismo entranhado no cinema pernambucano. Estamos tratando de enterrá-lo de uma vez por todas.

Não esqueceremos dos opressores! MACHISTAS NÃO PASSARÃO!  

Assinam essa nota:
Cabelaço PE
Coletivo Feminista Diadorim
Coletivo LGBT Toda Forma
Coletivo Mulher Vida
DACINE
DAPSI
Flores Crew
Flores do Brasil
Fórum de Mulheres de PE
Movimento Zoada
Ou vai ou Racha
SOS Corpo Instituto Feminista para Democracia

Instituto Papai

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